Foto extraída de https://pt.linkedin.com
JOSÉ MIGUEL SILVA
Nasceu em Vila Nova de Gaia – Portugal, em 1969.
INICIAÇÃO
Entre pedras afiadas,
a janela por abrir.
Alguém o acompanha
nos recados da manhã:
sal 12 pães 1 kg de maçãs
fósforos canela.
Ao sair da mercearia,
roubaram-lhe os pedais da bicicleta,
a roda de orações.
Mãe, quis saber,
quem tomou conta de mim
quando eras pequenina?
( In: O sino de areia. 1999 )
*
ANTI-ÉGLOGA
A verdade é que também as urtigas
me aborrecem. Esta doçura dos pássaros,
a silvestre quietude da tarde atravessada
pelo balido das ovelhas, grandes imitadoras
de Edith Piaf, tudo isso não chega a ser
vermelho, mas um pouco de sangue
na biqueira do sapato faz-me falta.
Faz-me falta praguejar, ter um lago
de cimento onde cuspir, obstáculos
de fogo, fantasias, a metralha dos calinos.
Não me sinto nada bem com a doçura,
com a paz dos ermitérios, de onde Deus
se retirou há quinze anos. Esta resignação
das árvores, dos faunos, das silvanas,
da restante bicharada típica dos lugares
onde sofrer é natural como estar só,
a conclusão é que não sei caminhar sem sapatos
que me apertem. As sandálias do pescador
as botas do alpinista, não me levam
a lado nenhum. Detesto confessá-lo,
mas eu sou da cidade até à raiz do terror.
Não consigo viver sem o saco de areia
onde exercito o excessivo golpe de exasperação.
Sem esse esbracejar a minha selva coagula,
torna-se pastosa, sonolenta, felizita
como um rio de meandros preguiçosos,
lamacentos, imprestáveis — de que me serve
fingir o sossego a que não chego, brincar
às Arcádias em que não acredito?
Está decidido, prefiro sofrer.
Amanhã de manhã regresso ao abismo.
https://pt.linkedin.com/ SEIS
As lágrimas trazem um cão para dentro de casa.
Numa casa compassiva dá-se valor ao choro,
aceita-se o repto de mais uma boca
para morder. Assim a criação já não vai sozinha
à mercearia. Se que bater na professora,
bate no cão, o cão foge
para debaixo de um taxi, a criança
deixa crescer as unhas, arranha
com paciente fúria a magreza dos seus braços e chora,
chora a sua infância morta.
(In: Vista para o pátio. 2003)
*
MORRER EM LAS VEGAS – MIKE FIGGIS (1995)
Ó Las Vegas, altar do mundo, não é sorte
o que te peço, só te peço que recebas
esta alma já em corpo decomposta, este corpo
decompostos em desespero. Eu, cidade,
fui cuspido, e não quero nada,
eu acendo-te uma vela que não arde.
O amor quando chegou à minha vida
chegou como ambulância retardada pelo tráfego.;
Acolhe com favor a minha negação
e sepulta-me de rosto virado ao deserto.
( In: Movimentos no escuro. 2005)
*
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Página publicada em novembro de 2021 |